Um impulso arqueológico move a atividade artística de Jurandy Valença. Boa parte de sua poética envolve o garimpo de documentos, que são incorporados ao trabalho. O artista coleciona imagens sintéticas, gravadas em capas duras de livros antigos, encontradas sob gastas sobrecapas de papel. Persegue esses ícones – breves e objetivos –, que contêm certa carga de sentidos e significados e resumem, em poucos traços, algumas centenas de páginas de literatura.
Mas seu ato artístico não consiste na apropriação da capa ilustrada para sua transformação em imagem – esse seria o ímpeto de qualquer colecionador –, e sim na operação de renomear os livros. É no ato de intitular que o artista toma posse da imagem, assimilando-a em sua Biblioteca particular. Não importa que jamais venhamos a conhecer os títulos originais dos livros. Afinal, ao serem fotografados pelo scanner, eles deixam de ser livros para tornarem-se imagens.
Com este projeto, em processo desde 2002, Jurandy Valença afirma-se como um artista arquivista. O farol, a moldura, o globo terrestre em chamas e outros ícones formam uma coleção de citações. Cada imagem é a representação de um universo pessoal, uma auto-referência às preferências literárias do artista. Do livro anônimo somos transportados ao território “da biblioteca de” Jurandy Valença; o que era ilustração torna-se uma marca de identificação de uma coleção, portanto, um ex libris.
A Biblioteca particular, exposta no Paço das Artes, é ainda uma operação semiótica de deslocamento e manipulação de signos. O procedimento de reelaboração iconográfica aqui é similar ao realizado na série Lugar algum (2005-2007). Lá, por meio do processamento digital de fotografias de objetos banais, Valença construiu emblemas da vida cotidiana: duas colunas tornaram-se o símbolo da discórdia; um interruptor que emana um halo de luz, a imagem da insônia; duas escadas justapostas, o emblema da trégua. Lá, ao ganhar ambiguidade, o objeto entra na esfera do símbolo. Aqui, na Biblioteca, o ícone perde sua função original para virar síntese, atalho de acesso a um universo particular.
Em ambos os casos, fala-se de um teatro de signos, em que a realidade é alterada de forma a criar associações, analogias e duplos, sem que isso represente nenhuma perda do vínculo com os acontecimentos do cotidiano.