Grasiele Sousa e Marina Takami

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Grasiele Sousa e Marina Takami

Grasiele Sousa é dançarina e performer. Mestra em psicologia clínica pelo Núcleo de Estudos da Subjetividade Contemporânea da PUC/SP e graduada em educação artística pelo Instituto de Artes da Unesp (2003). Pesquisa ações corporais, em particular para o cabelo, autobiografia e reperformance. É membro fundadora da extinta associação Brasil Performance BrP desde (2010-2015). Desenvolve os projetos Cabelódromo e Cia. Subdesenvolvida de Dança. Já apresentou suas performances no Brasil e no exterior. Marina Takami é artista visual e pesquisadora. Doutora em estética e história do cinema na Universidade Paris VIII. Mestre em estética e história da arte pela USP (2008) e graduada em artes plásticas pelo Instituto de Artes da Unesp. Atua nas áreas de preservação de patrimônio artístico e cultural, história da fotografia, videoarte e cinema de autor.

Daniela Mattos



ENTREVISTA COM GRASIELE SOUZA E MARINA TAKAMI

Daniela Mattos

D.M.: Contem sobre o processo de criação do projeto Trishacrete. Qual foi o percurso de idealização deste trabalho? Por meio de que caminhos o olhar de vocês passou até chegar a esta curiosa e interessante associação entre os movimentos da performer norte-americana Trisha Brown, um dos emblemas do experimentalismo nas artes nos anos 1970, e um dos ícones da cultura de massa dos anos 1980, as Chacretes?

G.S.: Trishacrete é um projeto sobre reperformance, arquivo, encontros entre legados artísticos e culturais pouco prováveis de acordo com uma historiografia oficial da arte. Posso dizer que as ideias que levaram a esta proposição que nós apresentaremos na Temporada de Projetos 2016, partem de um projeto anterior, que desde 2011 existe de forma conceitual, chamado Dança MalDita, ou ainda, Companhia de danças subdesenvolvidas. Os dois nomes remetem, com certa dose de ironia, à maneira como determinadas formas culturais, quando ligadas a uma cultura midiática, tendem a ser assimiladas - invisíveis - em determinados circuitos de prestígio da Arte.

Meu encontro com Marina Takami se deu em colaborações pontuais iniciadas em 2007 em trabalhos que integram artes visuais (fotografia e vídeo) e de ação (dança e performance). Nossa parceria toma formas diversas, presenciais e à distância (estamos entre SP e Estrasburgo, na França), e se nutre de discussões constantes em torno de temas gerais relacionados à arte, cultura e educação na contemporaneidade – especialmente em países ocidentalizados como o Brasil – e outros mais específicos como: corpo feminino, nutrição, cosmética, representação, arquivo, memória e registro das artes. Além disso, nós desenvolvemos separadamente nossos trabalhos de caráter teórico que tocam também esses assuntos.

A partir do momento em que busquei reperformar a ação Accumulation (1971), de Trisha Brown, comecei a conversar com a Marina e assim nasceu o projeto Trishacrete. Accumulation é uma coreografia de curta duração na qual uma matriz de movimento, extraída de uma gesticulação trivial, é repetida seguidas vezes e, a cada vez, renovada com a inclusão de um novo gesto. Uma importante premissa para a criação dessas performances realizadas por Trisha na época era a de que qualquer movimento poderia ser dançado e que um gesto cotidiano não seria confundido com uma dança espetacular. Deslocar movimentos cotidianos para o território da arte (supondo que há esta “distância” entre arte e vida) era uma operação que buscava o esvaziamento de um vicioso repertório artístico e, ao mesmo tempo, uma investigação do comum, do ordinário e do minimalista, assuntos partilhados pelos que circulavam na cena estadunidense da época.

Historicamente, Accumulation tornou­-se uma obra de referência da história da arte contemporânea, podendo às vezes ser entendida como um “modelo”, condição esta contrária ao que imaginamos que pretendia a artista. Nosso principal argumento para refazer a coreografia de Trisha é a criação de estratégias para manter o seu espírito provocativo a partir de um comentário atento aos efeitos dessa posição comumente assumida entre legados artísticos de “fora” (do velho mundo, da América do Norte) e da produção local.

Em Trishacrete, nós vamos acumular na performance de Trisha movimentos das coreografias das Chacretes, um tipo de dança brasileira, presente na memória nacional, concebida para o grande público, difundido via televisão. Sabemos que o repertório de movimentos das Chacretes pertence a um cotidiano distinto ao de Trisha nos anos 70, porém, vemos nos dois casos formas de lidar com o gesto e a ação corporal muito convidativas a sua realização por qualquer pessoa. Arte e vida em diálogo. 

Para concluir, a mistura desses dois repertórios corporais nos pareceu inusitada e disparadora de um novo arranjo que poderia borrar certos binarismos ainda presentes na cultura de países ocidentalizados como o nosso, representados, por exemplo, pela oposição popular x erudito. Outro elemento importante para essa nossa criação é a relação do trabalho com os arquivos na web.

D.M.: Um dos pontos de grande interesse deste projeto me parece ser a noção de reperformance. Segundo vocês abordam em um dos objetivos do projeto, que cito aqui, a reperformance seria “um dispositivo que a um só tempo pode elogiar e criticar certa condição de culturas ocidentalizadas como a brasileira, no que se refere a um legado artístico que historicamente foi (é) imposto”. Como vocês entendem o funcionamento deste dispositivo em Trishacrete?

G.S. e M.T.:
Gostaríamos de dizer que do mesmo modo que não temos consenso – ainda bem –sobre uma única definição para o que seria performance, o mesmo acontece para sua repetição, a reperformance. Este termo, e a prática a repetição, tiveram maior visibilidade entre artistas, pesquisadores, curadores e instituições culturais desde que Marina Abramovic apresentou suas 7 Peças fáceis, no Guggenheim de Nova York em 2005. Uma das questões que surgiu, junto a esta espécie de estatuto para refazer uma ação proposta por Abramovic, teve inevitavelmente relação com estratégias do mercado de arte a fim de tentar comercializar trabalhos efêmeros, garantir a venda de algo autêntico e palpável em alguma medida. Contudo, imaginamos que a efemeridade de alguns trabalhos artísticos não satisfaz a lógica de venda de obras nem a sua catalogação e conservação.

Nosso interesse na reperformance tem que ver com questões relacionadas à construção de uma história alternativa àquelas outras constituídas por uma memória "oficial” da arte. Um exemplo clássico desta questão é o livro de Roselee Goldberg, A arte da Performance (2006), em que a performance tem seu “início” durante os anos 1960 e 70 tendo herdado ou sido realizada como proto-ações ainda no começo do século XX. Nesta linha temporal, há um total desconhecimento de uma produção que se realizava em lugares para além da cena estadunidense e da Europa central. Aqui no Brasil, nos anos 1930, Flávio de Carvalho já realizava performances, ainda que este termo não estivesse presente ou em voga.

Dessa maneira, a reperformance neste trabalho é a um só tempo uma estratégia para reescrevermos – com o corpo, com a câmera, com o olhar – uma história da arte que incorpora legados artísticos que se forjaram “modelo” e a escrita de uma história a partir de uma visão particular que não seja indiferente ao nosso modo de ler o mundo. É assim que consideramos que reperformar a ação de Trisha Brown hoje é um meio único e privilegiado de se relacionar com o trabalho da coreógrafa. Entendemos também que neste processo é necessário questionar visões hegemônicas, hierarquias e repertórios sempre com o objetivo de fugir da simplificação dos dualismos.

D.M.: Vocês estão trabalhando com duas possíveis noções de realização de uma ação registrada em vídeo, uma como cover da performance e outra como releitura da performance Accumulation, de Trisha Brown, ação realizada em 1971. Falem como elas serão realizadas no contexto de Trishacrete e como elas se relacionam, informam e compõe o trabalho, que também contará com ações ao vivo.

G.S. e M.T.:
Nós propomos a repetição da performance Accumulation, de 1971, tal como registrada no vídeo que encontra-se disponível numa plataforma digital. Esse dado é importante porque este arquivo da ação é o nosso ponto de partida para a realização tanto da versão cover como da versão releitura dos vídeos do projeto Trishacrete. Pensamos que um arquivo deve ser vivo e que a web oferece ferramentas privilegiadas para isso, considerando o lado “positivo” e “negativo” desta forma de circulação de dados que em todo caso nos parece menos hierárquica que outras. Foi com este arquivo da ação de Trisha que aprendemos a coreografia, seus acúmulos e repetições, foi desta imagem que saíram as ideias de indumentária, enquadramento e de música.

O espaço expositivo será ocupado de modo acumulativo ao longo das duas primeiras semanas de exposição. Na abertura ocorrerá a performance ao vivo da versão releitura, a filmagem desta ação com a presença do público, entre duas projeções de dois vídeos distintos da versão cover realizadas para a câmera em novembro deste ano. Uma delas busca repetir o ângulo de registro, enquadramento, movimentos de câmera e o tom mais sombrio do arquivo de Accumulation. A outra, por sua vez, inverte o ponto de vista e coloca a câmera no palco e a performance ocorre no espaço da platéia. O tom deste vídeo também tende ao branco e enfatiza esta inversão, a escolha da montagem que coloca este vídeo na parede da entrada também exige que a audiência se vire em direção à porta de entrada para ir ao seu encontro.

Tal como no arquivo encontrado na web, esses vídeos não contém áudio. A música original utilizada por Trisha foi suprimida do arquivo que circula em razão da política e direitos autorais da plataforma. Optamos por reproduzir na exposição esta intervenção e propomos aos visitantes, que possuem acesso à internet móvel, a audição da canção através do acesso por um QR code disponível no espaço. Queremos com isso ressaltar o elo do nosso trabalho com o arquivo do registro da performance Accumulation tal qual ele circula e é conhecido hoje. “Copiar” o vídeo de Accumulation que está na web foi também uma forma de expor as convenções que norteiam a construção de uma memória a partir de sua documentação. Neste sentido, também foram escolhas conscientes o formato mais quadrado do vídeo e numa qualidade de resolução inferior a fim de aproximar-se de uma textura de época.

Uma semana depois da realização da performance releitura ao vivo faremos a versão cover para a audiência. No mesmo dia, iremos acumular um terceiro vídeo no espaço expositivo resultado da coreografia releitura. Nosso referencial para sua edição foram arquivos em vídeo encontrados na web de alguns programas do Chacrinha e compilações das Chacretes dançando, montadas por pessoas que imaginamos serem seus fãs. Nos inspiramos então, nos tipos de enquadramentos utilizados para mostrar essas dançarinas em ação.

Passamos do plano-sequência, enquadramento aberto e frontal de Trisha em Accumulation para uma sequência bastante dinâmica baseada numa colagem de diferentes pontos de vista da dança - e do corpo - das Chacretes. Outra coisa que muda é a relação entre música e vídeo. Produzimos uma trilha sonora baseada na linguagem do mashup, que é um tipo de composição por colagem que mistura trechos de músicas que tenham algum tipo de relação entre si. Nós encontramos uma canção dos anos 70 que possuía a mesma melodia de outra que, anos depois foi gravada por uma das Chacretes, a Rita Cadillac, “É bom para o moral”. Colamos essa melodia setentista a fragmentos das vozes de Rita, do Chacrinha e da canção do Grateful Dead utilizada por Trisha na ação original, na tentativa de manter a mesma polifonia característica do programa do Chacrinha na TV.

D.M.: Sabemos que as performances realizadas nas décadas de 1960 e 1970 estiveram informadas por um enfoque crítico e de escape do engessamento da arte e, especialmente em países latino-americanos, também de luta política. No entanto, nas últimas décadas ela vem sendo mais e mais capturada e instrumentalizada pelo circuito institucional e comercial da arte contemporânea. Como vocês se colocam em relação a isso?

G.S. e M.T.: É interessante começar essa resposta com uma observação sobre os performers desse período citado por você e de agora, a partir de uma das centralidades da linguagem da performance, o corpo. As subjetividades dos anos 1960 e 1970 foram parte de um contexto específico da contracultura que não se repete. Os corpos, desejos e embates, a cada época se modificam. Acreditamos que esse tipo de aproximação deveria observar essa questão.

Se a performance esteve fora do museu e da galeria, mais recentemente, por ironia do destino, ela está na instituição. Resta saber se ela tem a intenção ou potência para manter sua força provocativa. Do ponto de vista da comercialização da performance dentro do espaço institucional vale observar o status dado nos últimos tempos ao vestígio de uma ação como também o seu registro. Eles justificam a criação de uma exposição, por exemplo. Vemos então uma tentativa de “catalogar” e comercializar performances, seguindo os modelos instituídos para outros meios e linguagens da arte contemporânea. Mas dado seu valor efêmero - é uma arte da presença, do “ao vivo” -, esta tentativa se demonstra sem grandes êxitos.

Achamos que o intenso debate que se faz na atualidade sobre performance e arquivo demonstra como esse processo é complexo e exige uma formulação própria. Quem sabe, seria interessante desistir de querer fazer da performance um documento objetivo? Melhor seria se a documentação de performance fosse entendida como um dispositivo que se soma a outras possibilidades de transmissão dessa arte, como a memória do corpo. Refazer uma performance é em alguma medida a tentativa de criar no próprio corpo a memória viva do “outro”. Estamos dentro da instituição fazendo reperformance como uma forma de alimentar este debate do arquivo. Nós propomos que a reperformance seja uma forma de levar adiante uma ação histórica, contando com a subjetividade deste ato de repetir algo que, no nosso caso, está aberto a um comentário atual sobre a provocação (“antiga”) de Trisha.

D.M.: Trishacrete é um projeto de duas mulheres que abordam aspectos performativos dos corpos de outras mulheres. Ainda que formalmente se perceba uma correlação entre os movimentos, que em ambos os casos são bem demarcados, realizados como uma série de acúmulos e combinações, há um elemento que os difere radicalmente: o timbre da sensualidade presente em cada referência. Como pretendem lidar com isso no trabalho?

G.S. e M.T.: Poderíamos dizer que, além do timbre da sensualidade presente na dança das Chacretes e na coreografia da Trisha Brown, há ainda no nosso trabalho o timbre da sensualidade da Grasiele, da Marina e da própria câmera. Essa perspectiva é importante para o nosso processo de criação pois reunimos em Trishacrete estes diferentes corpos para, em alguma medida, descontinuar uma narrativa naturalizada pela história da arte e da cultura do entretenimento que dificulta a aproximação entre essas mulheres e suas formas de se expressarem corporalmente. Trabalhamos então para que o corpo andrógino da dança pós-moderna presente em Accumulation e as performatividades do corpo da dançarina de palco que rebola, “sensualiza”, sorri, dança conforme o beat da música se encontrassem numa mesma performance. 

Certamente, há uma diferença radical entre o timbre de sensualidade “daqui e o de lá”, e o que queremos é expor essa diversidade só que numa dada situação em que haja abertura para se pensar nas Chacretes como artistas tão interessantes como a Trisha. Um dos riscos que corremos com esse trabalho é a leitura de que nós estamos buscando a legitimidade das Chacretes na dança da Trisha, mas definitivamente isso não é relevante para nós. Preferimos ficar com a ideia de que elas podem ser vistas como equivalentes a partir da dedicação que tiveram neste ofício, o de dançar e fazer arte.
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