Elisa de Magalhães

Rio de Janeiro - RJ/ Brasil, 1962

  • Série A vida dos outros - Parque Laje (2010)
    fotografia
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Elisa de Magalhães

Artista visual, mestre em artes pela UERJ e doutoranda em artes pela UFRJ. Entre suas principais exposições individuais estão O anel, tese de defesa de dissertação de mestrado, em 2007, e Todo pensamento emite um lance de dados, na Casa de Cultura da América Latina, na UnB, em 2003. Entre suas principais mostras coletivas estão O último livro, projeto do artista Luis Camnitzer, atualmente em cartaz na Aguilar Branch of the New York Public Library, e Dinâmicas da luz, no Oi Futuro Flamengo, RJ, em 2010. A artista vive e trabalha no Rio de Janeiro, onde também atua como editora de cultura da Rádio MEC AM.

Marcio Harum

A interação da vida carioca com o morro e o asfalto é exaltada ao máximo do voyeurismo no trabalho em fotografia A vida dos outros: Parque Laje (2010) de Elisa de Magalhães, selecionado para esta primeira exposição da Temporada de Projetos 2011. De sua própria janela residencial, entre centenas de shootings a distância das lentes que o seu aparato alcança, a artista reúne, penduradas desde o teto na montagem desta instalação aérea, em torno de 400 fotografias produzidas no período de um ano. A estrutura labiríntica de becos, ruelas, encruzilhadas e escadarias, com suas típicas casas brasileiras de favela lajeada, tem o foco direto apresentado nesta mostra em formato de diário de observação sócio-topográfico da cidade em que vive a artista. Sem hesitação alguma, o trabalho remete às profundas transformações enfrentadas pelo país nos últimos anos, o que fez com que o estilo de vida das populações das encostas pobres fosse alterado drasticamente. Elisa vem com esta sua investigação nos confirmar a visão do que tem sido desenvolvido recentemente ali naquele ambiente cotidiano: uma cultura coletiva de festas e churrascos de fim de semana, com direito a banhos de piscina dobrável na laje ao som de funk e samba, junto à área restrita aos varais de lavandaria das novas mansões-barracos. Imbuído de um espírito invasor da privacidade, este trabalho evidencia nada mais do que prosaicos flagrantes – justo o que é absolutamente tão evitado pelo juízo exacerbado da classe dominante. Não obstante, o que já é de amplo conhecimento público: um labirinto que nos desorienta em infinita repetição, aquele mesmo lugar antes visitado por uma espiadela urbana mais atenta, de quem nasceu em cidade grande do país e não teve medo de enxergar o sentido (ou a falta de) que paira muito além dos índices e temas de economia. Repensar o Rio de Janeiro em 2011, sob a ótica do projeto da Secretaria de Segurança Pública do estado com a chegada, enfim, da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) a Santa Teresa, até certo grau um bastião da classe intelectual e artística da cidade, não é um simples exercício. Tal qual é transmitida a sociedade pelos noticiários de TV ou cenas de novela, a instalação A vida dos outros: Parque Laje requer muito mais de nossa atenção do que apenas uma rasa compreensão jocosa do que é superrepresentado na mídia pelas multicamadas das ameaças dos disparos de fogo cruzado e dos desabamentos de costões ocupados. A presença do mutirão da vida alheia no trabalho de Elisa de Magalhães alude a um ideal em desaparecimento: se uma comunidade comemora, todos nós poderíamos comemorar junto. Como o labirinto, a exposição tem em seu centro a formação de um mistério, o que nos dá a chance de guardar o próprio segredo diante de qualquer realidade.

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Conversa entre Elisa de Magalhães e Marcio Harum por e-mail em abril de 2011

Elisa, você acredita que é necessário contextualizar a realidade do Rio presente em seu trabalho apresentado na 1ª Temporada de Projetos 2011 para o público de São Paulo? Se positivo, como isso talvez pode ser realizado?

Antes de tudo, um preâmbulo (quase) desnecessário.

Fui bailarina clássica até aos 18 anos, quando um acidente me impediu de continuar a carreira. Depois disso, abandonei a arte, me formei em comunicação social/jornalismo e fui trabalhar como jornalista. Com cerca de 36 anos descubro na pintura um retorno à arte e, no ato de pintar, um retorno ao movimento.

Como artista plástica, minha formação se dá na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, com ênfase, claro, na pintura. A fotografia entra no meu trabalho como uma possibilidade de pintar sem pincel, como a pintura encarnada da qual fala Didi-Huberman. De início, usei uma câmera sem lentes (pin-hole), e minhas fotos traziam questões da pintura. Comecei fotografando o entorno doméstico até que virei a câmera para mim, para meu próprio corpo. Essa pesquisa comigo mesma, com meu corpo mediando os trabalhos, sem que o trabalho se configurasse exatamente como um autorretrato, durou cerca de dois ou três anos, sempre estruturando as imagens como referências à história da arte, mas não só. Desde sempre usei uma pin-hole com dois diafragmas, isto é, com dois furos de alfinete no anteparo que permite a passagem de luz, de tamanhos diferentes para que a imagem sempre tivesse um duplo, não superposto, mas espectral, fantasmático (como em Derrida).

As questões da alteridade, do duplo e da relação com o outro foram se impondo nessa pesquisa. E a mediação com o corpo foi se revelando como uma recorrência no trabalho.

Às questões da psicanálise (Lacan e, especialmente, M. D. Magno), que já eram presentes com intensidade na minha vida desde o acidente, somaram-se naturalmente questões da filosofia (Foucault e, em seguida, a esquizoanálise de Deleuze-Guattari), necessárias na minha pesquisa poética e, como consequência, na minha pesquisa acadêmica.

Nesse sentido, a fotografia, que para mim nunca foi um fim, mas um meio, como pode ser a pintura, o filme, o vídeo ou a dança, passa a ser instalada no espaço, de modo que o espectador, de alguma forma, precise interagir com ele, usar o próprio corpo. É justamente na época dessa instalação espacial que, somando-se aos textos ensaísticos, aparece o entrecruzamento com textos poéticos e ficcionais.

Em dado momento, resolvi que colocaria o espectador em meu lugar, no lugar do modelo, do fotografado. Propus, então, um trabalho que chamei de Exposição. A essa experiência, que teve uma segunda versão, chamei de clínica, clínica em arte (há na revista Poiesis nº 15 um artigo meu sobre essa experiência. Segue o link: www.poiesis.uff.br). Fazendo uma síntese, a proposta da Exposição era a seguinte: em um estúdio montado por mim (na primeira versão, num caminhão de obras de arte; na segunda, numa sala de aula de história e teoria da arte), convidava visitantes da exposição a fazer uma foto dele nu. O fotografado tinha que escolher uma pose, inspirada em obras da história da arte. Livros de nus da história da arte estavam no estúdio para o caso de alguém precisar. A foto era exposta imediatamente após a sua execução, numa parede externa ao estúdio, à vista de todos. No primeiro caso, usei uma câmera instantânea (tipo polaroide), transformada para o processo pin-hole. As fotos eram expostas, depois de reveladas na frente do modelo, numa parede do espaço expositivo. No segundo caso, usei uma câmera digital de altíssima resolução, e as fotos foram projetadas num telão, em tamanho natural, do lado de fora, num corredor de grande movimento do espaço expositivo. Em cada uma dessas versões, fiz cerca de 100 fotos. Foram esses os trabalhos deflagradores da minha pesquisa no mestrado e, agora no doutorado, quando entendi que fazia com eles uma clínica em arte. Mas não com a intenção de curar. A clínica em arte não pode ter esse objetivo. A clínica em arte não tem um objetivo final. O objeto, a ação em arte, deflagra um processo terapêutico, no qual a história da arte, a vida, a memória e a formação – como uma autobiografia que tem autonomia da própria vida – fazem parte da psique do observador ou daquele que vive a experiência artística.

Como já mencionei, acrescente-se a estas questões que minha obra é toda referenciada na história da arte e costurada com textos, ou referenciados a eles, de todo tipo. Porque cada trabalho tem uma reflexão teórica que se transforma num texto, o qual faz parte dele.

A vida dos outros é composta de várias séries de fotografias. A que mostro no Paço das Artes é a que chamo de Parque Laje. E o labirinto que apresento é um dos desdobramentos dessas fotos. Todas essas séries nasceram da observação de uma janela mais próxima; um vizinho que dispunha nela, em dias de sol, roupas de cama, edredons, lençóis, cuidadosamente superpostos, a janela como pintura. De um vizinho a outro e o olhar de um entorno maior (tenho uma vista de pouco mais de 180o do meu apartamento). Da disposição das roupas nas janelas às roupas nos varais, nos finais de semana, os dias em que as pessoas estão em casa e podem fazer tarefas domésticas. Daí à observação das festas nas lajes nos finais de semana. Fiz, de casa, fotografando cenas da vizinhança, um movimento labiríntico, assim como observava a favela posta como um labirinto sobre as encostas. E pensei no trabalho como uma experiência de labirinto – uma questão topológica e não topográfica.

Ao procurar sentido para a observação que fazia a partir da minha janela, fui buscar como primeira referência o cinema: A janela indiscreta, de Alfred Hitchcock. Vi o filme, observando os movimentos de câmera, para onde ia e como ela, que era o olho do protagonista, observava os vizinhos. James Stewart, nesse filme, é um fotógrafo que, depois de um acidente, é obrigado a ficar de repouso em casa e passa seu tempo observando a vizinhança, de sua janela. Um ensaio do filósofo Slavoj Žižek sobre o filme, em que ele estuda o filme à luz da teoria lacaniana, também me deu subsídio.

Para escolher a forma do labirinto, recorri ao estudo de um linguista húngaro chamado Károly Kerényi, intitulado Estudos do labirinto, que é interessante e me foi extremamente útil. Kerényi era amigo e admirador de Heidegger, e buscava, em sua pesquisa, a origem do labirinto. Quando chega aos labirintos cretenses da era minoica, ele se dá conta de que a origem do labirinto é anterior a esse período. Esses são labirintos descritos, cujas histórias foram contadas por Homero. O que ele quer é descobrir o labirinto anterior a essa era, isto é, o labirinto antes da fala. Nessa busca, ele chega a manifestações culturais que viam no labirinto uma passagem para outro mundo; era, ao mesmo tempo, origem da vida e lugar da morte. Havia danças ritualísticas cuja formação humana era de um labirinto em movimento, em cujo centro se fazia um sacrifício. Era no centro do labirinto, em forma de espiral, a forma mais original de labirinto, que acontecia a passagem para dentro da terra, ou para outro mundo.

Há, também, na mitologia hindu, no Rig-Veda, as figuras das Apsarás, dançarinas rituais que levavam as pessoas para a morte. Dançando em espiral, elas eram as condutoras. A espiral está presente no coque-labirinto de Kim Novak em Vertigo (Um corpo que cai), bem como na escadaria e na própria apresentação do filme – Zizek também escreveu sobre esse filme, o que me ajudou a fazer as conexões.

Foi a forma desse labirinto original, dessa espiral, transformada em um quadrado, que escolhi para o meu labirinto. Só que, como um labirinto derridiano, nele não há um centro, não há um local de passagem para onde quer que seja; o labirinto não leva a lugar nenhum; leva somente à experiência do labirinto.

A realidade de um lugar, carioca ou não, não precisa ser conhecida, ela pode ser vivida poeticamente, pode simplesmente aspirar ao grande labirinto.

Qual a sua verdadeira intenção em estabelecer relações com a localidade e aquelas pessoas em O gosto dos outros- Parque Laje através do aparato fotográfico?

Interessante como nessa pergunta você foi traído pelo ato falho. O trabalho chama-se A vida dos outros – Parque Lage e não O gosto dos outros – Parque Lage. Aliás, há um livro interessantíssimo, de um antropólogo francês, Benoît de L’Estoile, cujo título é Le goût des autres, que faz uma crítica à antropologia que continua partindo do ponto de vista do homem ocidental, fazendo uma relação bem oswaldiana com a antropofagia. Usando um trecho de uma resenha de Leornado C. Bertolossi, sobre o livro de Benoît, que cai muito bem nessa entrevista, L’Estoile aposta em futuros museus não mais de outros mitos estéticos ou científicos, mas que promovam duplos como o teatro artaudiano, enfatizando as relações que constituem os diversos lados da rede, entre pessoas e coisas que vivem ao mesmo tempo em mundos singulares e plurais, diferentes e iguais aos nossos”.

A minha intenção não é estabelecer relação com aquelas pessoas ou localidades, nós já estamos em relação desde sempre. Tampouco sou portadora dessa realidade para outro lugar. Não é da arte pretender levar a verdade. Qual a verdade em arte? Até que ponto vivemos a realidade, até que ponto podemos ver o real? Concordo com Derrida, em sua leitura de Nietzsche, que diz que vivemos uma ficção que está sobre outra ficção. São muitos véus que nos impedem de chegar a um real embaixo deles, que não há. O que levo para esta exposição não é uma determinada realidade, não tenho nenhuma intenção de fazer um estudo antropológico ou sociológico, embora toque nessas questões, claro. Se há uma intenção (não tenho certeza se o artista tem uma intenção clara em seus trabalhos), é a de levar o jogo, a experiência do filme-labirinto.

Há mais: cada foto, bastante colorida, tem a cor nos varais; cada foto traz questões da pintura, da fatura e da forma. Mas o conjunto é obscuro. Sugere um movimento que está latente nas fotografias, mas que não há. Fiz, há algum tempo, uma instalação chamada Todo pensamento emite um lance de dados. Aproveito para encerrar esta resposta com uma observação de Alain Badiou, que compara ao fecho de Mallarmé em Coup de dés esta frase de Beckett: [...] Un trou d’épingle. Dans l’obscurissime pénombre. À des vastitudes de distance. Aux limites du vide illimité (em uma tradução livre minha: “Um buraco de alfinete. Na obscuríssima penumbra. Às vastidões de distância. Aos limites do vazio ilimitado”).

Por que você trabalhou somente com a fotografia para a realização desse trabalho?

Como eu esclareci no preâmbulo que tomei a liberdade de fazer sobre meu trabalho, logo na primeira resposta, creio que esta última pergunta deixa de ter sentido. A fotografia é apenas um meio, para mim, como é o vídeo, a pintura, o desenho, a dança e o texto. Neste caso, parto da fotografia para a instalação de um labirinto. A vida dos outros – Parque Laje não é fotografia, mas labirinto, e a experiência fílmica dele. E esse é um dos desdobramentos dessa série de fotografias.

Sobre o meu lapso em relação ao título de seu trabalho, já que você menciona Hitchcock por duas vezes (vou procurar sem dúvida os textos/ensaios de Žižek sobre os dois filmes citados), tanto em Um corpo que cai (Vertigo) quanto em A janela indiscreta, em nossa conversação: troquei mesmo o título do filme A vida dos outros por O gosto dos outros. E o mesmo ocorreu em relação à grafia de Lage (do Parque) com a presença da laje na sua exposição no Paço. Essa mescla vai de encontro com o texto que escrevi para o folder. Conversaremos a respeito muito em breve, após a nossa conversação ser concluída.

Que labirinto você talvez já tenha percorrido como experiência maior? Parece-me algo extraordinário pensar as figuras dançantes Apsarás da mitologia hindu, no Rig-Veda, como aquelas que conduzem à morte. E que curiosidade a sua referência a Estudos do labirinto, que desconheço, desse linguista húngaro Kerényi. Vou buscar conhecer de perto também este trabalho. Sim, em nosso imaginário talvez desejemos ainda reler o Aspiro ao grande labirinto como HO o vivia todo o tempo.

Mas de regresso à vida real: como a UPP afeta a vida dos outros em Santa Teresa em 2011?

O livro a que me referi só tenho em francês; não sei se foi traduzido. Chama-se Tout ce que vous avez toujours voulu savoir sur Lacan sans jamais oser le demander à Hitchcock, organizado por Slavoj Žižek, editora Navarin. Eu o comprei num sebo no Rio com dedicatória de um certo Brunno para uma tal Clara em junho de 88. Quanto aos lapsos, não há problema nenhum com eles. São engraçados porque são reveladores ou, melhor, porque imprimem ainda mais mistério no que se revela já misterioso. Eu mesma, quando fui brincar com você, cometi outro ato falho: escrevi Parque Lage, com ‘g’, como o sobrenome que nomeia o Parque onde fica a EAV. O título correto da obra é A vida dos outros – Parque Laje.

Você me pergunta sobre um labirinto que eu já tenha percorrido como experiência maior. Quem na vida não viveu uma experiência de labirinto? Vamos lá:

A primeira grande experiência consciente de labirinto foi o início da aprendizagem de ballet. Quando somos crianças, as professoras nos ensinam que temos uma cordinha que atravessa o corpo no sentido longitudinal, e que, para ficarmos esticadas, coluna ereta, temos que puxar essa cordinha. O gesto da professora sobre nossa cabeça é sempre descrevendo uma espiral, como se a bailarina contivesse uma dentro dela.

Outra experiência é a da rosa. Quando criança, morava numa casa com quintal e jardim. Ganhei do jardineiro da casa uma muda de uma roseira que vi crescer e dar flor, e que cheirava sempre. A rosa é um labirinto de cheiros e de sensações inesquecíveis.

Tem também o acidente que me impediu de dançar, essa sim uma experiência indelével de labirinto. Eu dormi bailarina (tinha uma audição marcada com Maurice Béjart, que estava no Brasil e que tinha conhecido no Theatro Municipal, outro labirinto que faz parte da minha vida. Você já entrou no Theatro Municipal do Rio pelos fundos, pela entrada do corpo de baile, da orquestra, dos funcionários?) e acordei aleijada (esse foi meu sentimento quando o médico disse que nunca mais poderia dançar – claro, com a medicina de hoje teria sido diferente). Naquele momento, e nos anos subsequentes, procurei desesperada uma saída, mas custei a achar o fio de Ariadne, e fiquei perdida muito tempo neste labirinto, fugindo do Minotauro.

Ainda como experiência de labirinto, bastante marcante foi vivenciar O corpo é a obra, de Lygia Clark, que esteve montada na 24ª Bienal de São Paulo. Quando já estava no final daquele labirinto/corpo, proposto por Lygia, na saída mesmo, um pé dentro e outro fora, fiquei presa pelo brinco, sem poder (ou querer?) sair. Metaforicamente falando, fiquei presa pela orelha na vagina!

Acresça-se a essas experiências o fato de eu ter uma leve dislexia. Perdida em labirinto é ainda mais difícil orientar-me para qual lado ir.

Há uma experiência labiríntica especial, a de Jorge Luis Borges. Entre espelhos, jogos de xadrez, espirais e jardins de caminhos que se bifurcam (que usei em outra instalação minha, Persona vitrea), em Atlas há um conto que resume tudo isso: “Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações, como María Kodama e eu nos perdemos. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações, como María Kodama e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto”.

A mais recente experiência de labirinto aconteceu numa viagem que fiz no início do ano, pouco antes da exposição. Fui visitar, em Haia, o Museu Municipal. É um prédio de construção bauhausiana, enorme, cheio de corredores e portas. Ficamos – eu e minha filha mais nova – até perto da hora de fechar e os seguranças começaram a pedir que saíssemos. Como era turista, fingi não entender o que diziam e comecei a fugir deles, entrando em outras salas, em vez de segui-los até a saída. Acontece que o prédio era um labirinto e, à medida que abria portas, não encontrava uma saída sequer, mas outras salas, com mais obras de arte, achava as escadas, descia e dava em outro corredor com mais portas, que eram outras salas de exposição. Pensei por um momento que ficaria feliz se finalmente encontrasse o Minotauro. A propósito, jurei voltar a Haia para rever esse museu. Ainda nessa viagem, perdi-me várias vezes no centro histórico de Utrecht, onde cada rua, com suas casinhas seculares, bifurca-se em duas, margeando os canais. Quando estava em São Paulo para a montagem, li uma novela de Beckett, intitulada O expulso. Num texto labiríntico ele faz uma viagem-labirinto pela cidade onde se passa a novela. Veio-me à mente a fascinante experiência-labirinto de Utrecht.

Finalmente, volto a Borges, que, junto com Derrida, foram fundamentais para pensar o labirinto de A vida dos outros – Parque Laje:

“Labirinto

Não haverá nunca uma porta. Estás dentro

E o alcácer abarca o universo

E não tem nem anverso nem reverso

Nem externo muro nem secreto centro.

Não esperes que o rigor de teu caminho

Que teimosamente se bifurca em outro,

Que teimosamente se bifurca em outro,

Tenha fim. É de ferro teu destino

Como teu juiz. Não aguardes a investida

Do touro que é um homem e cuja estranha

Forma plural dá horror à maranha

De interminável pedra entretecida.

Não existe. Nada esperes. Nem sequer

A fera, no negro entardecer.”

Vamos à sua segunda pergunta, na qual você me solicita voltar à vida real para falar da UPP. Mas, afinal de contas, nem a obra nem a artista jamais saíram dela. O próprio Hélio teve uma intensa atuação em Mangueira. Até hoje, quando os Parangolés são apresentados publicamente, são passistas da Mangueira que vêm vestir as capas, além dos brancos da classe média. Como no poema de Antonio Machado “Caminante, no hay camino“, a vida é feita de escolhas. Você sempre tem que abrir mão de um caminho, de uma coisa, por outro/a. Não seria isso um labirinto, no qual estamos imersos desde sempre?

Não me parece que a UPP seja mais real do que o labirinto da vida. Afinal, como nos lembra Paul Valéry, “o mais profundo é a pele”, e vivemos num mundo sobre a pele do mundo, que está sobre a pele do mundo. De qualquer forma, o que mudou com a UPP em Santa Teresa é que não ouvimos mais tiros, nem fogos de artifício, anunciando a chegada de drogas, a polícia subindo o morro ou a execução de algum rival. Patrulhinhas, muitas delas, sobem e descem o morro, no lugar das motocicletas do “motopó”. Muitos moradores pintaram suas casas, e os grafiteiros, agora, pintam os muros nas favelas. Está mais colorido. Mas ainda há a marca do Comando Vermelho em algumas paredes. Até agora, essas não foram apagadas, nem passaram tinta por cima. De resto, está tudo igual. Nada mudou no dia a dia da população. O tráfico, dizem, ainda está aqui, só que age mais discretamente. E há um fenômeno que vem acontecendo, mas desde antes da UPP. Muitas casas no morro estão colocando cobertura nas lajes. É um telhado prateado que atua como filtro de calor e que, quando está novo, dói na vista de olhar. Quando mais velho, perde o brilho. É uma mudança, porque antes o pessoal tomava sol na laje e banho de chuveiro ou de mangueira para espantar o calor. E para as crianças, piscinas de plástico. Já disse anteriormente que a minha obra dialoga com a história da arte. Mas no fundo é sempre sobre e para as pessoas, os “outros”.

Recebi hoje um e-mail da minha filha, aquela que se perdeu no labirinto comigo. Creio que responde bem à sua pergunta. É de Eugenio Barba, no livro A terra de cinzas e diamantes:

"Portbou é aquela cidadezinha espanhola, na fronteira com a França, onde Walter Benjamin, fugindo do nazismo, se suicidou. Na primavera de 1995 passei lá pra visitar a sua tumba. Naturalmente, procurei-a no cemitério. Não a encontrei. De uma hora pra outra, me dei conta de que não poderia estar ali: ele era judeu e, além do mais, suicida.

O cemitério está sobre uma costa rochosa que se debruça sob o céu e o mar. Não muito longe dali, erguia-se do terreno a embocadura de um túnel. Pareciam vísceras de aço construídas com espessas chapas de metal como as dos encouraçados, com escamas de ferrugem causadas pela salsugem e pelo tempo. Alguns degraus, também feitos de aço, desciam ao longo do túnel até o mar. Comecei a descê-los, e minha imagem veio ao meu encontro. Eu via, lá no fundo, a cor verde-azul da água, e, ao mesmo tempo, eu via a mim mesmo me aproximando. O final do túnel se defrontava com o vazio e com o mar, e era fechado por uma parede de cristal. Era essa parede que refletia a imagem de quem descia. Enquanto admirava a ideia do monumento que Dani Karavan tinha dedicado à memória do cabalista marxista, eu seguia o fio da minha emoção. A minha imagem naquele vidro ligeiramente opaco parou minha descida. Sobre a parede de cristal, em alemão, espanhol, francês e inglês, estava incisa, em letras minúsculas, uma frase de Walter Benjamin: ‘É uma tarefa muito mais árdua honrar a memória das pessoas sem nome do que a das pessoas célebres. A construção histórica é consagrada à memória daqueles que não têm nome’.

Eu gostaria de falar sobre o momento central da recente história do teatro como se fosse a história de jovens sem nome. Queria apresentá-la como ela era naqueles anos: uma história subterrânea – como a das toupeiras, que escavam túneis embaixo da terra. Fanáticos deslumbrados por uma miragem? Foi o reconhecimento geral e a celebridade que transformaram essa miragem num diamante?”

Não sei se te respondi. Mas continuamos.

Tenho lá também como grande coincidência uma forte experiência com o labirinto na cidade holandesa de Haia. Explicarei pessoalmente.

Estou bastante satisfeito com a nossa conversação, ainda mais com as suas últimas citações, que vão de Borges a Benjamin, passando por Valéry, e de saber como anda Santa Teresa com a recente presença da UPP.

Por enquanto, cessamos tal comunicação.

Grato. E seguimos.

Com um abraço da noite de Páscoa (“Domingo é na pele” – Leonilson),

Marcio


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