Regina Parra

São Paulo/Brasil, 1985

  • Mise-en-scène (2009), óleo sobre papel
    Dimensões: 40x50 cm cada
  • Mise-en-scène (2009), óleo sobre papel
    Dimensões: 40x50 cm cada
  • Vista da exposição Mise-en-scène (2009) 
    (Foto: Divulgação)
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Regina Parra

Imigrantes da Argentina, Bolívia, Colômbia, Congo, Guiné e Peru, que entraram clandestinamente no Brasil e hoje moram em São Paulo, leem trechos em português da carta "Mundus Novus", de Américo Vespúcio. Escrito por volta de 1503, após uma viagem pelo Brasil, esse relato é tido como o discurso inaugural sobre o Novo Mundo. A polifonia dos sotaques diversos não só faz alusão às relações de poder que uma língua estranha é capaz de impor, mas também aos processos de colonização que marcaram nossa história.

Fernando Oliva

Uma das maneiras de lidar com a tensão latente que é parte indissociável da obra de Regina Parra reside no debate histórico entre o “natural” e o “posado” no gênero do retrato – dilema que remonta ao século 18 (Chardin), atravessa a fotografia moderna no início do século 20 (desde Walker Evans) e chega até a produção contemporânea, seja a pintura figurativa (Gerhard Richter e sua série Baader-Meinhof, Lucian Freud, Luc Tuymans etc. etc.) ou o vídeo (os rostos em still de Julian Opie ou o Zidane de Philippe Parreno/Douglas Gordon).

Como observou o historiador norte-americano Michael Fried (1), o retrato, mais que qualquer outro gênero, se baseia na apresentação de algo ao olhar do outro (no caso, o público). Ou seja, sua ação básica se resumindo à auto-apresentação do retratado à observação de alguém – no limite, o que se representa é o próprio “estado de observância”. Deste modo, o retrato seria extremamente mal aparelhado para lidar com a necessidade de negar ou neutralizar a presença do observador, uma opção, por excelência, moderna (se até o século 18 o retrato era considerado uma opção menor, isso se devia especialmente a seu grau de “teatricalidade”). Uma estratégia que artistas (como Chardin e Jean-Baptiste van Loo) adotaram para vencer esta limitação foi pintar as pessoas como se absorvidas pelo pensamento ou ocupadas por alguma atividade qualquer (daí a quantidade de retratos em que os personagens lêem cartas, desempenham alguma tarefa doméstica ou simplesmente olham pela janela).

Fried lembra ainda que a “naturalidade” sempre foi uma espécie de ideal fotográfico, baseada na crença de que uma pessoa que é registrada sem perceber revelaria algo de mais verdadeiro em relação a si mesma (os registros não-autorizados, estilo paparazzi, feitos por Walker Evans na década de 1930 foram recebidos como as imagens o mais realista possível da América e do norte-americano). Ao passo que alguém consciente da presença da câmera iria necessariamente “teatralizar” sua auto-apresentação. 

Na série Mise-en-scène de Regina Parra vemos a mesma personagem, uma jovem de cabelos loiros e compridos, envolvida em situações cotidianas: sacando dinheiro no caixa eletrônico, saindo do carro no estacionamento, ou esperando para atravessar a rua. Não sabemos se age de maneira “natural” (naturalizada), desempenhando mecanicamente suas ações, ou premeditada, como se cumprisse um roteiro pré-determinado.

Trata-se da imagem da própria artista capturada por câmeras de segurança de circuito fechado. Ela dirige toda a cena: estuda o set, posiciona-se e coordena a execução do registro por outra pessoa, fotógrafo amador. Deste modo, usando uma câmera digital comum ela extrai, diretamente do monitor, um still.

É justamente este momento de tempo/tensão concentrada (espécie de freeze-frame cinematográfico) que tem o poder de promover uma fissura no embate proposto por Michael Fried como “natural versus staged” – além de comentar uma certa crise na noção de gênero, tanto na arte contemporânea como no cinema e na fotografia. Ao assumir papéis simultâneos, de alguém que tem o poder de colocar em cena (metteur-en-scène) e de quem é meramente dirigido, Regina promove um contundente deslocamento na posição e condição do observador: do lugar de espectador passivo para um campo de ambiguidades e paradoxos – como nas narrativas de suspense hollywoodianas, quando duvidamos da integridade do personagem e ficamos totalmente à deriva. E talvez venha daí todo desconforto e instabilidade que estas imagens suscitam.

(1) FRIED, Michael, Absorption and Theatricality: Painting and Beholder in the Age of Diderot, Chicago Press, 1980.

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Colocar em cena : Uma conversa com Regina Parra (parte 1), por Fernando Oliva 

Fernando Oliva: Vamos começar falando sobre o início da sua carreira. Porque caminhos vc chegou ao curso de artes plásticas?

Regina Parra: Antes de fazer artes plásticas, eu fiz artes cênicas na ECA e trabalhei como atriz e assistente de direção no CPT (Centro de Pesquisa Teatral coordenado pelo Antunes Filho). Fiquei no CPT três anos, um período muito importante para mim porque o Antunes sempre privilegiou uma formação ampla dos atores. Então, apesar de trabalhar com teatro, discutíamos filosofia, cinema, dança e artes plásticas também.

Logo depois que sai do CPT, fui morar no Rio de Janeiro. Fiquei um ano por lá, trabalhando como garçonete e fazendo cursos no Parque Lage. Tive aulas de pintura e também de teoria com profissionais como Wilson Coutinho e Paulo Sergio Duarte. Apesar de já ter tido contato com pintura quando criança – fiz meu primeiro curso aos 11 anos – foi só no Parque Lage que eu comecei a pensar na possibilidade de levar isso adiante. 

Foi aí que eu fui para Paris para fazer um curso de pintura na École des Beaux Arts. Fiquei lá três meses e quando voltei, resolvi voltar para a faculdade – dessa vez para cursar artes plásticas. 
 
Fernando Oliva: Por favor fale sobre o curso de artes plásticas da Faap. O que foi mais importante ali, para seu projeto como artista?

Regina Parra: Acho que o mais importante foi o contato com os professores, a possibilidade de interlocução, de pensar e discutir questões relacionadas ao próprio trabalho. Isso é muito bacana no ambiente acadêmico, esse interesse na discussão, no embate, na troca. Além disso, tem o contato com os outros alunos e os trabalhos dos outros alunos que também te estimulam o tempo todo. 

Tive muitos professores marcantes na Faap. O Edu Brandão foi fundamental. Conheci poucas pessoas que defendem a arte como ele. Discutia os trabalhos de uma forma bem crítica, questionando mesmo, chamando junto. Era alguma coisa como ‘se é isso que você quer fazer, então vai ter que levar isso tudo muito a sério’. Era meio um vai ou racha. E isso me fez muito bem. Além do Edu, o Paulo Pasta e o Zé Spaniol também foram importantíssimos, especialmente para discutir questões práticas de pintura. A Regina Johas e o Marcos Moraes também foram ótimos interlocutores e ajudaram muito no desenvolvimento e aprofundamento do meu trabalho. 

Fernando Oliva: Que situações/escolhas você considera decisivas em seus anos de formação?

Regina Parra: Acho que ter uma certa obsessão e disciplina para fazer as coisas foi bem importante nesse período. Na faculdade você se depara com mil possibilidades, mil caminhos diferentes. E às vezes isso paralisa. Sabe aquela situação em que você pode fazer tanta coisa que não sabe nem por onde começar? Eu sempre tentei experimentar de tudo na faculdade, de cerâmica a litogravura. E sempre tentei levar isso muito a sério, mais do que um como trabalho de faculdade, era um jeito de me experimentar e descobrir um pouco mais sobre meus próprios interesses.

Só comecei a pintar no segundo ano da faculdade, em 2005. No ano anterior tinha visto os trabalhos do Tuymans na Bienal e aquilo foi importantíssimo pra mim. 

Fernando Oliva: Gostaria que você falasse sobre a sua experiência no teatro. O que ficou deste processo, como "legado" pessoal e profissional? Em que medida você ainda sente as influências daquele período?

Regina Parra: Trabalhei com o Antunes Filho por três anos. Foi um período muito intenso porque o CPT funciona como uma espécie de rito de passagem, você meio que abdica de tudo e passa a viver só em função daquilo por um tempo. É pesado porque o Antunes é um cara super exigente e sempre trabalha no seu limite. Ao mesmo tempo, é muito bom porque é uma possibilidade de mergulhar de cabeça numa pesquisa que não fica limitada só ao teatro. Na verdade, o teatro, o espetáculo, é um pretexto para tratar de outras questões. Então foi uma oportunidade muito boa para tentar entender quais questões são importantes para mim e 
porque. 

Eu ainda carrego muita coisa do CPT e cada vez que eu paro para pensar vejo que ainda tem mais do que imaginava. Um dos pontos centrais da nossa pesquisa era tentar trabalhar com um naturalismo ‘fingido’, distanciado. Não apenas chegar em cena e ser espontâneo, o legal é construir a espontaneidade. É parecer espontâneo, quando na verdade tudo foi estudado antes. É o naturalismo – ou a falsa espontaneidade – usado para chegar numa determinada intenção. Assim, nada podia ser gratuito. Todos os gestos, elementos de cena, entonações eram simbólicos. 

Outra opção ao ‘naturalismo construído’ era trabalhar com um naturalismo ligeiramente distorcido; para que com essa pequena distorção o espectador pudesse ser levado para um outro lugar. 

Acho que essas questões podem ser vistas de certa forma nas minhas pinturas, a estranheza, a atmosfera cotidiana e aparentemente inofensiva. 

Fernando Oliva: A experiência do medo fez parte, de algum modo, daqueles anos? Seria possível estabelecer alguma relação desta sensação com alguns de seus trabalhos recentes?

Regina Parra: No período que fiquei no CPT, acompanhei todo o processo de montagem da tragédia grega Medéia. Foram 18 meses de pesquisas e ensaios, e mais 18 de espetáculo. Acho que a ideia da tragédia ainda está bem presente nos meus trabalhos.

Na série Controle, por exemplo, a tensão produzida pelas imagens é uma tensão muito semelhante a que temos acompanhando um herói trágico. Todos já sabem que Édipo vai casar com o própria mãe e ter um fim trágico e é por isso que o espetáculo é tenso desde o início. O horror é olhar o herói tentando escapar da sua tragédia e ao mesmo ter certeza de que ele não vai conseguir evitá-la. É muito parecido com a tensão que temos ao olhar a pintura que mostra a princesa Diana momentos antes do acidente fatal ou avião da TAM. 

De certa forma, a ideia de um horror iminente acompanha meus trabalhos. Mesmo na série Mise-en-scène, onde a personagem sou eu e nada sabemos sobre o final da minha história, procuro fazer com que a imagem traga essa sensação de ameaça, de vulnerabilidade. Acho que tem um pouco a ver com um medo muito atual que é esse medo vindo do terrorismo. A sensação de que alguma coisa pode acontecer a qualquer momento e com qualquer pessoa. 

A série Mise-en-scène é uma referência explicita ao teatro. Não só pelo título, mas porque é uma tentativa de trazer para a pintura questões como encenação/ não encenação, espontaneidade/ fingimento. Quando a gente para para pensar se aquilo é encenado ou não, começa a perceber que talvez tenha tomado um monte de coisa como testemunho do real, sem saber o que era de fato.
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