Naiana Magalhães

Fortaleza/CE, 1986

  • Imagem da exposição “Miragem Cariri”, de Naiana Magalhães
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Naiana Magalhães

Diego Matos


Diego Matos

Abaixo, a entrevista entre a artista Naiana Magalhães e o curador Diego Matos.


A conversa entre os dois foi realizada ao longo de duas semanas, e esclarece ao público o projeto "Miragem  Cariri", agora apresentado no programa expositivo da Temporada de Projetos 2018 do Paço das Artes. Nessa troca, roteirizada  por meio de reflexões e ponderações, o leitor e o visitante da exposição terão condições de acessar as referências conceituais, históricas e formais do conjunto de  trabalhos que compõem essa grande instalação.

Diego Matos: De início, seria relevante expor aos seus interlocutores o que de fato compreende o projeto, e, por conseguinte, a instalação ou o corpo de obras Miragem Cariri. Quais são seus nortes conceituais na pesquisa e na reflexão poética proposta? Ainda, há uma história em particular a ser contada?

Naiana Magalhães: A mostra que apresento no Paço é composta por três trabalhos de diferentes épocas: a vídeoinstalação Afundados (2012), a instalação Miragem (2017) e os objetos Cariris (2018). Estes dois últimos tratam diretamente das minhas elaborações acerca da pedra Cariri. Além da sua característica de pedra fóssil, das suas cores e seus desenhos, as pedras Cariri me interessam também pela história muda que carregam. O próprio nome “Cariri” significa “silencioso”. Mas não só pelo simples fato de serem fósseis, e sim, porque são fósseis que revestem o cotidiano urbano desta parte do litoral nordestino. São pedras extraídas do sertão cearense, na região do Cariri, e exploradas comercialmente na construção civil, sendo as mais baratas. Revestem todo o calçadão da Praia de Iracema em Fortaleza-CE. O que mais me chama atenção é que possuem 100 milhões de anos e são passadas despercebidas pelos transeuntes que pisam nelas, em um litoral onde reina a especulação imobiliária.

As escolhas dos signos presentes na conformação da instalação são convites à reflexão, não dados a priori, mas que desvelam as camadas que envolvem este trabalho com as pedras. Minha abordagem está em apresentar as próprias pedras, no formato em que são vendidas para a construção (lajotas 40cm x 40cm). Em algumas veem-se claramente fósseis de peixe; em outras, figuras de prédios com lápis sanguínea, em alusão às pinturas rupestres. Parte das pedras são mostradas elevadas sobre bases, cobertas por cubas de acrílico: composição clássica dos expositores de museus de paleontologia. É uma maneira de inverter e colocar em questão o caminho que essa pedra/fóssil faz ao sair de uma pedreira da construção civil para o pedestal paleontológico. O espaço preto também vem como reforço dessa intenção museológica de “neutralizar” o espaço, e dar destaque às peças. Bandejas e cubas de acrílico contendo água são incorporadas à instalação de modo a também produzirem reflexos das ondulações da água, evocando as transparências das construções litorâneas, além de serem um convite à contemplação.

Na vídeoinstalação, vê-se o topo de um prédio em construção, em contraste com a maior parte da tela, ocupada por um céu azul. O chão brilhoso, coberto com linóleo, reflete o céu e o topo do prédio, em um movi- mento imagético ondulado e esverdeado, aproximando a imagem daquele topo a uma plataforma marinha flutuante. Nota-se a forte impressão de mar, apesar de ele não existir ali fisicamente. A maneira como lido com os objetos também é uma extensão da minha abordagem no vídeo. Parte do mesmo olhar que contempla o litoral urbano e, ao fazê-lo, sou impelida a movimentar contextos, história e o encontro de tempos. São tempos e es- paços que perpassam a paisagem de cidades litorâneas, onde habitei. Em muitos trabalhos abordo a cidade pela via do mar. Lido com a reelaboração das imagens que compõem a paisagem da construção civil no litoral. Trata-se de um setor produtivo que carrega grandes vetores de desigualdade social e mal-estar urbano, mas que através de uma operação poética, em meio ao incômodo, pode fazer emergir momentos de devaneio e reflexão. Escolho a sutileza como estratégia de resposta à agressão monumental que são as edificações destas cidades, o que ressoa certa ironia face à impossibilidade de responder à altura de algo tão grande e aparentemente inalcançável.

DM: Ao titular e nominar esse conjunto de obras, duas palavras se coadunam: “miragem”, que denota a ação do olhar na construção de um campo imagético balizado entre o real e o imaginário, e “cariri”, que constitui substantivo ou característica para origem indígena do sertão nordestino, ao mesmo tempo que denomina uma região específica do interior do Ceará. E também, como você bem coloca, pode ser compreendido como algo de natureza silenciosa. No meu entender, parecem ser então termos complementares que intensificam o significado desse conjunto de trabalhos, alternando os seus valores entre substantivo e adjetivo. Tal interpretação é correta? Que paralelos de significação podemos construir tendo em vista esse exercício de nomear?

NM: Sim, é correta. Podemos fazer tantos paralelos quanto há significados carregados por essas palavras ao tocarem os objetos na sala, contribuindo como acessos às camadas que compõem o trabalho apresentado. A escolha da palavra “Miragem” emergiu da observação de características físicas presentes nos trabalhos. Os reflexos que provocam ilusão de ótica formam imagens como na vídeo instalação, ou constituem outras, como os reflexos sobre as pedras. Para mim, de todos os vetores trazidos por essa palavra, o de maior gravidade é o sentido de ilusão, em toda a sua amplitude. Já o nome “Cariri” foi arriscado, devido às diversas significações e referências fortes a uma região que já é tão rica e permeada de histórias e identidades. Portanto, o risco maior era justamente esse de regionalizar e tratar como folclore. Mas decidi deixar, assumir, por se alinhar com as camadas e etapas de absorção que compõem o trabalho. Penso que esse nome encarna bem o ponto dos significados escondidos, pois carrega universos que convivem entre si, histórias que se sobrepõem. A própria palavra já é outra língua, de uma nação que estava aqui muito antes de nós, demandando de pronto uma tradução aos que, entrando em contato com o nome, minimamente se perguntam o que quer dizer. E, a partir daí, sentidos que estavam aparentemente ocultos se desvelam.

DM: A meu ver, há um sentido de lugar, de inscrição territorial evidente, correto? Como tal condição afeta ou mesmo condiciona seu trabalho? E tal apreensão se faz por uma junção entre um sentido histórico e outro sensorial (visual), não acha?

NM: Sim, há essa forte inscrição de território, trazida pelo nome “Cariri”. Não sei se condiciona pois, como eu disse, o lugar de referência é apenas uma das camadas que compõem o trabalho, mas certamente afeta no sentido de apontar o lugar do estrato dessa camada que sustenta as outras acima dela. Penso que essa inscrição de território já se dá no nome, de imediato, mas não está nos objetos. Portanto, a junção entre o sentido histórico e o outro sensorial (visual) na verdade tanto pontua como expande essa inscrição, tendo em vista que o que está na sala não corresponde, referencial- mente, de maneira direta, à região do Cariri. Batizar um objeto com o nome de um lugar é operar ambivalências e contaminações recíprocas.

DM: Em sua pesquisa, parece haver um claro interesse em falar de um tempo em suspenso ou de um lugar que foi fissurado para nossa observação. Neles — espaço e tempo — são aproximados uma realidade interiorana, central, e uma perspectiva fronteiriça, litorânea. Concomitantemente, há um contraste de tempo histórico e geológico, que integram uma pré-história velada, pouco conhecida, e uma história recente da urbanização e crescimento das grandes metrópoles litorâneas brasileiras. Seria uma maneira de olhar para dentro via sertão e enxergar o fora determinado pela borda litorânea? E vice-versa? Nesse sentido, você acredita numa possibilidade de colisão dessas duas perspectivas (interior e exterior, sertão e mar, entre outras) para questionarmos o presente e construirmos um futuro?

NM: Sim, tenho interesse em falar desse tempo em suspensão. Algumas facetas do nosso regime histórico atual se apresentam na obsessão pela eficiência, no aceleramento, na desconexão com o passado, como se ele não existisse, e também na desconexão com o futuro, visto de forma incerta e duvidosa. O eterno presente, como diz o historiador François Hartog. Na verdade, o tempo não muda, o que muda é a nossa experiência com ele. O tempo não está se esvaindo, mas, sim, certas formas de temporalidade ou compreensão do tempo. Apresentar um tempo em suspenso e um lugar fissurado para nossa observação é o que penso compor a contemplação — dito que contemplar remete tanto a marcar um espaço para observação como a um lugar para adi- vinhar o futuro (templar, os oráculos). Tendo em vista a origem da palavra, hoje elaboro e entendo a contemplação não como uma operação que estagna e imobiliza o corpo, mas, sim, como a preparação do porvir. Eu a trato como o espaço que aproxima tempos, não para adivinhar o que vai acontecer, como é dito ao pé da letra na etimologia, mas, sim, para entender o que deve ser feito (a construção do futuro). Portanto, busco aproximar os tempos histórico-geológico e o de nossa história recente de urbanização, sim, pois temos a tendência de separamos o(s) tempo(s). Mas por mais que pareçam distantes, gosto da perspectiva do filósofo Henri Bergson, que diz que tempo é duração. Esse é o seu elemento espiritual, sua substância pura: o que dura. É uma coisa só, não necessariamente de maneira linear, em uma única direção passado-presente-futuro. Em linhas bem gerais e resumidas, nas formulações de Bergson, com as quais me aproximo, o passado não está atrás do presente, mas, sim, a seu lado. Não se transforma em passado, ele de pronto já o é. Ao ser acessado, informa ao presente o seu sentido, sendo assim uma memória para o futuro, e não uma memória do passado.

Partindo desse entendimento sobre o tempo, não sei se a palavra seja “colidir” duas polaridades espaciais (dentro e fora) para questionar o presente e construir o futuro. Talvez seja mais mexer na experiência de tempo por meio da contaminação entre centro e fronteira, para produzir uma outra forma. Didi-Huberman fala exatamente isso no livro “Sobrevivência dos Vagalumes” (2011), se a gente consegue imaginar que o passado encontra o presente, juntos formam o brilho de uma constelação que libera uma forma para o futuro.

DM: Quando falo de colisão, me refiro mais ao entendimento “ir de encontro”, promover um contato conflituoso ou não. Portanto, essa sua leitura pode ser vista como um método para sua produção? Aliás, você identifica, ao longo de seu processo criativo e de construção das obras, um método de trabalho e ação? Como você pensa seu processo criativo e produtivo para além de "Miragem Cariri"?

NM: Certamente, minhas elaborações acerca do tempo, temas históricos e memória têm sido uma constante. Mas elas podem mudar. Não sistematizo um método fixo, porém alguns processos são recorrentes, como: buscar entender a história da formação de um lugar, ou algum elemento do lugar que me salte, observá-lo em seu dia a dia hoje e a partir daí pensá-lo poeticamente. Assim como pode acontecer a simples observação direta de situações que me levam a devaneios. Nesse contexto, dentro da minha elaboração poética, está um pensamento pictórico que envolve e contamina as mídias que utilizo, que passam pela pintura, vídeo e instalações. Por meio delas, encampo deslocamentos e intervenções no desenrolar de situações filmadas ou apresentadas espacialmente, que deixam as coisas fora de lugar, de modo a sair da ordem dos grandes feitos, do messiânico. Procuro puxá-las para a ordem do profano e do cotidiano, ainda que marcada pela minha elaboração, mas no perímetro do estranho familiar.

DM: Vejo que você possui uma formação diversa que permeia desde uma prática tecnológica ligada à linguagem do vídeo até o interesse por temas e situações ligadas à história do lugar de onde você vem e vive. Conte um pouco de sua trajetória e também desse entrelaçamento de interesses.

NM: Ingressei na Faculdade de artes visuais da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), na qual me graduei em 2012, ao mesmo tempo em que fiz o Laboratório de Artes Visuais do Vila das Artes, da prefeitura em Fortaleza-CE, coordenado pelo artista Solon Ribeiro. O laboratório e a faculdade foram importantes para o meu início nas experimentações com o vídeo, por terem sido um grande celeiro de referências trazidas pelos professores, além da forte presença do audiovisual na cena artística cearense. Em seguida, mudei para o Rio de Janeiro, estudando na Escola de Artes Visuais do Parque Lage por dois anos, entre 2013 e 2014. Tal experiência foi também importante na minha formação ao ampliar meu horizonte experimental e pensamento crítico. Em 2015, fui ao Canadá fazer uma residência no Instituto La Chambre Blanche, por conta da bolsa de residência internacional do LabMIS que havia ganho. Lá pude explorar um maior entrelaça- mento de outras mídias em meu trabalho, como o uso do som, e pensar o espaço que construo no vídeo para além do suporte. Depois disso, retornei a Fortaleza e ingressei no mestrado em Artes da UFC, ao mesmo tempo em que também participei do Laboratório de Artes Visuais da Escola Porto Iracema das Artes, com o mesmo projeto, no qual acompanhei pescas artesanais no alto-mar cearense. A maneira como elaborei e trabalhei as mídias e dispositivos, nos vários ambientes por onde passei, buscou a revisão de uma memória desses lugares, não apenas em referência aos grandes temas históricos plasmados na cultura, mas como eles operam no cotidiano de forma poética.

DM: Seu mestrado Sombra do Tempo, Risca Flutuante, concluído na Universidade Federal do Ceará (UFC), traz uma abordagem dedicada a discutir e aprofundar o tema da maritimidade ligada ao contexto cearense. Como é sabido, a relação local com o mar é extremamente ambígua, sendo ela uma história complexa de negação e afirmação. Como essa história ou essa relação cultural do mar resvala em sua proposta atual, aqui montada no Paço das Artes? Há uma relação complementar ou mesmo derivativa entre seu mestrado e o conjunto instalativo "Miragem Cariri"?
 
NM: Sim, elas estão relacionadas. Na geografia, a maritimidade estuda as relações de uma cidade com o mar. Em meu mestrado, levo isso para o campo da arte e discorro como os artistas constroem suas próprias “maritimidades”. Em meu trabalho, há sobreposições das mais variadas delas. Parto da maritimidade construída por Fortaleza (que nasceu dando as costas ao mar, voltando-se a ele nos séculos XIX e XX por motivos de exploração econômica ligada ao lazer e ao turismo), onde evidencio dois elementos de sua paisagem litorânea histórica e atual: a pesca artesanal e a especulação imobiliária. Construo então uma nova maritimidade sobreposta a essa, através do vídeo, onde coloco em relação esses dois elementos. O trabalho que apresento no Paço parte da observação do contexto desse mesmo lugar, só que aqui o elemento histórico vem por meio das pedras Cariri, moldadas e apropriadas pela urbanização predatória atual desse litoral.
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