Cristina Canale

Rio de Janeiro/RJ, 1961

  • Detalhe de Wohnzimmer (Sala de estar) (200-2001)
    mista sobre tela
  • Triunfo da tradição (2001)
    mista sobre tela
  • Escorrega (2002)
    óleo sobre tela
  • Piscina (2001)
    mista sobre tela
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Cristina Canale

Cristina Canale iniciou sua produção na década de 1980. Sua pintura é uma mescla de figuração com elementos abstratos, como Piscina, apresentada na Temporada de Projetos, construída por grandes manchas de cor. Em 2009, a artista esteve em cartaz com a exposição individual Contos, na Galeria Silvia Cintra, no Rio de Janeiro, e participou da coletiva Dentro do traço, mesmo, na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. Possui obras nas coleções do Itaú Cultural, Pinacoteca do Estado de São Paulo, Coleção da StadtsSparkasse Frankfurt (Oder), entre outras. 

Daniela Bousso

Cristina Canale é uma artista triunfante no contexto da pintura brasileira. Descende de uma linhagem de pintores - a geração 80- que aparentemente teriam vindo para ficar, mas, anos depois, viram suas produções pulverizadas e datadas. Não fossem o conhecimento e a densidade, atributos intrínsecos a sua obra, certamente a artista teria sido apanhada pela obsolescência que estão enfrentando muitos pintores que emergiram da explosão da pintura informada pelo eixo Milão/Berlim dos anos 80. 

A missão do pintor tornou-se um enorme desafio hoje, depois que a Transvanguarda tornou-se um arremedo Pós-Moderno. Somado a isso, a arte dos anos 90 voltou-se para uma espécie de inteligência artificial: representação ou imagem? Real ou virtual? 

Fato é que a tela pintada tornou-se pura fixidez, ao passo que a imagem proveniente dos meios tecnológicos tornou-se fluida. A subjetividade da pintura teve seu prolongamento nas representações da fotografia e do vídeo. Mas o que permanece como um fio condutor na trama da história é a busca da representação, antiga na vida do homem. De Lascaux aos Egípcios passando pela antiguidade clássica; da extensão desses percursos à Renascença assistimos ao aperfeiçoamento dos sistemas miméticos via aprofundamento da perspectiva. 

O aparecimento da fotografia no final do século XIX revolucionou o entendimento tradicional da representação mas, mesmo assim, isso não significa a superação da pintura como se ela fosse prescindível. A pulsão do artista é livre e sua legitimidade deve ser garantida, independentemente das regras do jogo de cada momento ou de modismos. A arte contemporânea incorporou e integrou a diversidade, seja de discursos e poéticas, seja de suportes ou meios. A criação artística não pode ser julgada por conceitos que a enquadrem em meras declarações de morte "desta" ou "daquela" tendência ou procedimento. É perfeitamente válido o artista dedicar-se ao meio pictórico hoje. Embora possa parecer quase uma heresia ser pintor, tão banalizado o ofício se tornou num meio em que convivem desgastes de mercado e desvios de discernimento crítico. 

A preponderância dos discursos teóricos, que privilegiaram a material idade pictórica e tridimensional no final dos anos 80 e na primeira metade dos anos 90, trouxe como resultado a exclusão de toda produção artística que não aderia a esses cânones. Como consequência criou-se um mal-estar, por sua vez causador de uma adversidade no meio artístico que até hoje ronda a pintura: rechaçam-se a estetização e a diluição dos discursos presentes na arte moderna, como também sua incorporação oportunista feita por osmose. Foram tachados de "formalistas" aqueles que permaneceram identificados com um certo grupo de ações e conteúdos circunscritos e agora patina ao redor dos acontecimentos na cena contemporânea na vã tentativa de se equilibrar sobre seus corrimões de papel... 

Mas a obra de Canale manteve-se ilesa e passou ao largo da pobreza que caracteriza o atual panorama da pintura brasileira. Junto com ela, alguns artistas da sua geração permaneceram: Marina Saleme, Nelson Serenei, Beatriz Milhazes, Adriana Varejão e Carlos Uchoa são alguns exemplos de artistas que constituíram universos pictóricos próprios, longe dos guetos e das perspectivas de reserva de mercado. A pintura de Canale atravessou o milênio e chega em 2003 sem a pretensão do novo ou do original, mas com a densidade de quem conhece o percurso das vanguardas históricas. Esta a consciência fundamental necessária ao pintor dos nossos tempos: noções bem fundadas na história da arte. Em Canale, acima de tudo, contrariando certas teses que afirmam que a pintura brasileira não se funda na tradição, identifica-se, ao longo da sua obra, uma certa luminosidade ... esta luminosidade, impregnada da ambiência e da paisagem carioca, revela um olhar que passeou também pela história da arte brasileira: a presença de pintores que se dedicaram à construção de um imaginário brasileiro, como Visconti, Grimm, Pancetti e Guignard transparece na sensualidade que perpassa a luz na pintura de Canale. A artista construiu uma obra de limites entre figuração e abstração: da impregnação matérica em suas obras do início dos anos 90 - chegando muitas vezes a depositar os pigmentos diretamente do tubo de tinta sobre a tela nas paisagens que traduzem a luminosidade do Rio de Janeiro - à diluição do cromatismo presente em suas telas mais recentes, Canale foi abrindo espaço para que se evidenciasse a presença do linear. A linha passou a integrar o seu universo gerando uma espacialidade na tela que pode ser traduzida por diversidade de planos e profundidades. Se antes a matéria farta constituía o repertório tátil da tela, agora as linhas operam para constituir uma inversão no mecanismo do olhar e da fruição propriamente dita. 

Mas a linha sempre esteve subjacente na pintura da artista. Mesmo camuflado pelas massas cromáticas, o linear é que configura o pictórico nas obras de Canale. Se hoje as suas representações tratam de interiores, de objetos banais, de assuntos do cotidiano e de paisagens, é porque todas elas são delírios, ilusões líricas que constituem um pretexto para pintar. Para Canale, a pintura é essencial como forma de vida, é uma espécie de esgrima, um duelo que se exerce no cotidiano e que em última instância se destrava no embate com a tela. É um diálogo consigo mesma, por meio do qual testa sua capacidade de chegar a um extremo que se materializa na concreção física da obra. É certo que Cézanne e Monet sempre informaram seu universo pictórico. Os excessos que se configuravam nas paisagens criadas por ela entre 1990 e 1992 - nas quais as massas de matéria espessa evidenciavam um conflito entre as formas (hoje grafismos) e o pictórico - reaparecem na materialidade diluída, agora pura luz, transmutados por um olhar que absorve a lição da pintura impressionista e a desloca para a apreensão do cotidiano, dos universos domésticos, da interioridade. A busca da intimidade do lugar, de um sinal de vida, de um movimento, desencadeia um processo e um espaço de ordenação da existência mesma, horizonte que se descortina e consolida uma subjetividade contemporânea mediante o rastro da pintura.

* Cristina Canale foi artista convidada para a Temporada de Projetos 2003
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