Sérgio Vasconcelos

Recife/PE, 1971

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Sérgio Vasconcelos

Sérgio Vasconcelos é formado em Artes Plásticas pela UFPE, 2003. Desenvolve trabalhos em várias mídias, como vídeo, ação/performance, fotografia, objetos, esculturas. No conjunto de sua obra, aborda questões que sinalizam com a existência do homem em sociedade, com a vida, cultura e a natureza. O artista traz em sua poética experiências ritualísticas de forte conotação social, simbólica, filosófica.

Joana D´Arc Sousa Lima

ENTREVISTA COM SÉRGIO VASCONCELOS

Joana D´Arc Sousa Lima

J.D.: Você poderia falar sobre quais questões, repertórios e discussões que o trabalho intitulado Trofologia suscita, e o que levou você a enveredar por essa pesquisa e colocar em operação tantas ações, camadas e marcas que o trabalho guarda? 

S.V.: Trofologia corresponde ao meu processo criativo, ou seja, um processo que, a rigor, está sempre em crescente… Eu, geralmente, tenho uma ideia, e essa ideia vai se desdobrando, vai tomando corpo e, geralmente, vou incorporando outros elementos, outras linguagens, e o trabalho sempre vai crescendo, em geral minhas ideias funcionam dessa forma. Trofologia nasceu da necessidade de discutir alimentação, que era um questionamento que eu já queria trazer para minha produção plástica. Eu já havia me deparado com esse termo há um bom tempo, ele não era incorporado especificamente a este projeto. Eu desejava trabalhar as questões da alimentação, mas o trabalho foi crescendo, e tomou outras formas e dimensões. Dentro do conceito principal, não trabalho só as questões da alimentação, isso ficou claro para mim. O trabalho reverbera em outras esferas e em outros valores. Eu toco nas questões da comunhão, da interação com o mundo, da separação natureza/cultura, da redução mesmo do antropocentrismo, porque trago essa relação do homem com os animais, uma relação mais “primitiva”, mais próxima do respeito e da troca – a própria desnaturalização dos dados civilizatórios, porque o homem passa a comer no nível do animal, uma coisa mais primitiva mesmo. 

Então, Trofologia tem toda essa dimensão que ultrapassa as questões da alimentação. Mas, em relação às questões referentes à alimentação, eu as abordei porque isso faz parte da minha vida. Por um bom tempo, fui vegetariano e queria trazer isso como elemento para o trabalho. Tanto é que exploro essa questão ao inserir, no trabalho, animais que fazem parte da alimentação humana, como a vaca, o carneiro, o porco, a galinha. Eu os trouxe por serem típicos de nossa alimentação. Mas também, literalmente, eu criei alimentos de uma determinada classe específica, para compartilhar com esses determinados bichos. Alimentos que fizessem parte do universo deles, de que eles gostassem muito e que pudessem ser compartilhados entre as pessoas e os animais, e que houvesse uma interação. Sobre essa questão da alimentação, é essa relação do que eu realmente como, do que eu considero importante para o corpo, a vida, em todos os aspectos – físico, emocional e espiritual também. Acredito que, por meio do alimento, a gente pode se transformar. E, de outra parte, repensar a relação que nós humanos temos com os animais. O foco é refletir como a gente pode ter esses animais em nossa alimentação, mas de forma equilibrada, harmônica, respeitosa. O que eu quero é levantar questões sobre o consumo desses alimentos, como se dão essas relações, e mostrar que há possibilidade de estabelecer interações mais respeitosas.

J.D.: O trabalho explora questões filosóficas, por vezes políticas, por vezes econômicas… Na abertura da mostra, ocorre uma performance que agrega outras camadas de sentidos e significados a toda essa discussão. O que essa ação abre, a mais, no conjunto dessa obra?

S.V.: Trofologia se divide – na parte dos vídeos – em quatro videoperformances com quatros animais citados e “atores” contratados, que compartilham o mesmo alimento, e, no quarto vídeo, eu sou o protagonista da performance. No final, há uma performance que tem esse embate entre dois humanos, dois homens que lutam, e a premiação é uma carne, um grande pedaço de carne (de vaca) in natura. Os quatro primeiros vídeos… vejo que eles são muito mais poéticos e têm outra atmosfera que acaba “meio” que se chocando com essa última que, a meu ver, é muito mais forte, mais impactante…

J.D.: Há um dado elemento forte, que é o da violência entre dois corpos, esse embate de dois corpos, dois pedaços de carne, que me chama atenção… 

S.V.: A violência está presente, sim. Escolhi esse esporte, especificamente, porque explora as questões da agressividade humana. O homem está lá na luta, no embate, na agressividade, e eu faço uma associação com o consumo da carne. Algumas crenças, algumas linhas interpretativas atribuem o consumo de carne a uma parte da agressividade humana, principalmente por essa questão de como o animal é abatido, de como o animal chega para o abate. A maioria das vezes, o animal passa por um sofrimento grande, por estresse, por raiva… acredito que tudo isso esteja impregnado nesse alimento. Isso tudo vai fazer parte de você, quando consumir essa carne. No primeiro vídeo, trago flores, plantadas e cultivadas por mim para serem alimentos de uma vaca e de uma mulher (dona da vaca). No segundo vídeo, tenho um carneiro dividindo frutas com um humano ou um humano dividindo frutas com o carneiro (risos). Uma alimentação muito saudável, como os legumes que estão sendo compartilhados, harmonicamente, entre um porco e uma outra mulher. No quarto, são larvas divididas entre mim e uma galinha – que eu criei com um galo, somente comendo insetos, ricos em proteínas, mais que a própria carne. O consumo do inseto também gera outros desdobramentos. Retomando a performance final, a disputa entre os lutadores instaura menos uma situação de compartilhamentos e harmonia, e mais uma tensão e embate, mas está dentro desse conceito maior da Trofologia. Essa performance, a mim me parece extremamente integrada às demais videoperformances. O estranhamento pode produzir deslocamentos e desnaturalizar contextos, maneiras de pensar, modos de vida.

J.D.: Sobre o papel da arte e da sua arte...

S.V.: Eu acredito… algumas vezes, identifico, no meu trabalho, uma transgressão. Acho que a arte ganha muito mais sentido, ela se torna mais potente, tem mais presença, quando você transgride. E eu acho que este trabalho tem esse elemento transgressor em vários pontos: é o homem que se coloca no nível do animal, esse elemento mais primitivo, por exemplo, comer com as mãos, dispensando talheres, pratos, no ambiente natural… dividir o alimento com o animal, no nível do animal… com o porco… produz um estranhamento, repulsa, e tudo acontece com tanta naturalidade e harmonia que as imagens desconstroem esses sensos comuns, esses embates entre natureza e cultura. De uma forma geral, o dado da transgressão está presente no conjunto do meu trabalho. Alguns elementos sempre transgridem, acabam trazendo uma outra abordagem. Tenho vários vídeos, minha produção já se estende por alguns anos. A linguagem em que mais tenho pensado, pela qual o trabalho se resolve, é através do vídeo, das ações. Sou formado em educação artística com habilitação em artes plásticas pela UFPE. Eu me formei em 2003, minha escolha por arte também foi um pouco tardia, mas foi no meu momento. 

Passei por outras áreas e outras experiências, mas o que me mobilizava para a vida era a arte e, daí, resolvi estudar. No início de minha trajetória, comecei experimentando a parte mais matérica, produzindo objetos, esculturas, mas, depois, senti a necessidade – porque é uma questão de necessidade daquilo que a ideia pede. Então, hoje, minhas ideias estão muito mais voltadas para o vídeo; não que eu tenha abandonado ou deixado de fazer algumas coisas. É só uma questão de necessidade. O trabalho pede uma linguagem específica, só se resolve daquela forma; não é só a fotografia, não é só uma questão meramente estática, não é apenas por meio do objeto que uma ideia pode se materializar, por meio de uma escultura, uma pintura, o que seja, mas a linguagem. O vídeo tem estado muito mais presente na minha produção. O vídeo pede a ação, exige a necessidade de uma interação, a foto também poderia dar uma dimensão do que é, sim, o trabalho, mas é estática, e a ação… acho que para mim ela reverbera muito mais, até mesmo pelo próprio áudio. No Trofologia, os vídeos têm trilhas específicas, criadas para cada situação, de acordo com o que o ambiente, os animais e a própria ação ou alimento… tudo foi estudado, nesse sentido. A trilha é uma parceria do musicólogo Hugo Pordeus e minha, foi um estudo à parte, sobretudo dele, com o meu aval. A necessidade do artista é urgente. Arte para mim é necessidade de vida. Arte para mim é vida. São as coisas que estou vivenciando naquele momento, é o que me mobiliza. 

Por fim, outro elemento transgressor neste trabalho é a pesquisa que venho realizando com impressão da fotografia na chapa de metal. Os resultados são incríveis, dão a impressão de um 3-D, de movimento, de volume… tenho gostado de investigar os resultados… dá um trabalho enorme, mas o prazer de mexer com a imagem vale a pena. No que se refere a essa colocação sobre a relação da arte, eu me lembrei de um fragmento de um texto que você escreveu, que eu até usei isso, entre aspas, lembra? “Comer é prazeroso, refletir sobre o que comemos, essa é uma tarefa política.” Toda ação humana é política, nossas escolhas, todas, de uma alimentação… todos os processos de nossa vida…

* Entrevista com Sérgio Vasconcelos, em sua casa. Uma manhã de verão na cidade do Recife, em 5 de janeiro de 2017.
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