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ARTISTAS
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Ana Elisa Lidizia é professora do Instituto de Artes da Uerj e curadora residente da Casa da Escada Colorida (RJ). Bacharel em história da arte (Uerj) e mestre em estudos contemporâneos das artes (PPGCA-UFF), pesquisa as relações entre imagem e palavra na arte contemporânea, com especial interesse na obra de artistas brasileiras e latino-americanas. Dedica-se à escrita de arte, tendo participado do Festival Panorama e produzido artigo publicado em Performar debates (Ed. Gramma, 2017). Coidealizou o projeto de intervenções urbanas Dia de glória (RJ). Em 2017 montou coletivamente a exposição Limiares, no Paço Imperial (RJ), e Cartografias, na Faculdade de Turismo e Hotelaria da Universidade Federal Fluminense. Em 2018 curou, junto a Jacqueline Melo, a exposição A/FRONT/A: artistas no front, na Galeria Espaço Piloto/UnB, e Chegança, no Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira (MUHCAB, RJ). Em 2019, fez a cocuradoria das exposições O rei que bordou o mundo e Uma delirante celebração carnavalesca: o legado de Rosa Magalhães, no Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica (CMAHO, RJ). Ainda em 2019 atuou como cocuradora de Eu vim me apresentar, no Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea (RJ). Em 2021, foi cocuradora do projeto e exposição virtual SAL60 e escreveu o prefácio do livro Ferrugem (Ed. Urutau, 2021), de Clara Machado. Colabora com a revista Círculo de Giz e desenvolve o projeto de pesquisa @deslizamentos.arte.

ferramenta ferragem ferrugem

Ana Elisa Lidizia

O projeto curatorial ferramenta ferragem ferrugem, de Ana Elisa Lidizia, deseja articular novas instâncias criadoras entre escrita e imagem. As obras de Clara Machado, Helena Trindade, Maré de Matos e Rebeca Carapiá desmontam a escritura; forjam novas letras, signo mínimo da escrita, fazendo, assim, com que todo um sistema de linguagem deslize, cambaleie, caia. Os gestos poéticos das artistas são ferramentas de construir e destruir. São ferragens para operar dentro do sistema linguístico. São ferrugem, porque põem as normativas no chão, desmoronadas, corroídas.

Quando se fala de escrita, do que se fala? Quando se fala de imagem, do que se fala? E quando se fala entre escrita e imagem, como se fala? Que rabisco, que linha, que garrancho são esses? Espaço híbrido entre letra e imagem, temos vontade de dizer. Nessa zona de indeterminação, encontramos as pesquisas de Clara Machado, Helena Trindade, Maré de Matos e Rebeca Carapiá.

Os trabalhos das quatro artistas de ferramenta ferragem ferrugem habitam esse espaço híbrido e mágico entre letra e imagem e operam, em sua maioria, na/a ilegibilidade. Para tanto, nós nos questionamos: o que acontece quando o pacto entre letra e imagem forja uma ilegibilidade? Ilegível, revés da legibilidade – o que é, afinal, legibilidade? –, uma escrita indecifrável, como os garranchos das crianças que aprendem a escrever. Mas também algo de ilimitado, aberto indefinidamente, dependente da leitura para se realizar.

A carioca Helena Trindade faz da letra um vírus, capaz de contagiar superfícies, ambientes e corpos. Vírus (2019), que tem corpo constituído de peças, das ferragens, da máquina de escrever (esse equipamento símbolo tanto da modernidade quanto de sua obsolescência), coladas uma a uma pela superfície da parede e do chão, espreita o espaço expositivo à espera de um hospedeiro.

As Mandalas (2022), uma instalação em lambe-lambes recortados artesanalmente, formando imagens circulares a partir de fotografias de “vírus”, remontam a certos usos de tradições religiosas como um resumo da manifestação espacial do divino, uma possível “imagem do Mundo”. Aqui, essa imagem Total é formada de fragmentos de um corpo-máquina que, uma vez disseminada na parede, a tudo contagia.

As Ferramentas (2021) da mineira do Vale do Rio Doce Maré de Matos,que é também poeta,revelam com determinação o caráter produtor da letra. Algo como letra: ferramenta. Ela está a criar seu alfabeto, usando a letra como um dispositivo nas operações linguagem-gesto e linguagem-ação. São esculturas que surgem a partir de um sonho, espaço do onírico e da narração sem explicação.

Estarmos vivas e cheias de ânimo. Rebeca Carapiá, soteropolitana nascida na Cidade Baixa, constrói espaços de vento entre as palavras; e dotar de vento é também dotar de vida (sopro-anima). Soprar palavras talvez seja da ordem do dizer sem explicar. Na escultura Ponto e vírgula (2022) dá a ver as dissidências e o descolamento entre linguagem e discurso, uma espécie de coreografia. A partir de elementos mínimos como um ponto (.) e uma vírgula (,) põe tudo em movimento, em dança. São linhas que vão se abrindo e desfazendo a língua normativa. Ao recusar os marcadores coloniais e recorrer à ilegibilidade da escrita, ou seja, aquela impossível de ser capturada, põe em jogo os conflitos das normas da linguagem, da leitura e do corpo.

Raras vezes basta escrever sem se deixar entender. É preciso, antes, retornar a uma escrita fóssil – elementar, primeira, corpórea. É o que faz a carioca Clara Machado com o método da monotipia. Utilizado nas Inscrituras I/Inscrituras II (2021) e nas Arcadas (2019), a matriz é marcada no papel, inscrevendo-se na superfície, ou seja, a técnica de construção das imagens é uma escrita, um ímpeto do corpo, sendo a imagem resoluta seu negativo, e a marca, sua ausência encarnada. Partindo de uma ferramenta-arcada-dentária inscreve um alfabeto hieroglífico que se dá pelo engendramento repetitivo de uma só letra-osso. E nós, seus leitores, atuamos como arqueólogos amadores, com acesso à Arcada (2019), um molde de gesso, tinta e folha de ouro.

Clara Machado, Helena Trindade, Maré de Matos e Rebeca Carapiá, cada uma a seu modo, elaboram um sistema a um só tempo imagético e escritural, híbrido, mágico, deslizante, pleno de possibilidades e de leituras infinitas. Letras chegam sempre ao seu destino. Estamos aqui.

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